A cidade mudou de um dia para o outro. Foi uma mudança abrupta, adaptou-se à novas regras e medidas, trancaram-se portas, fecharam-se lojas e ficaram apenas os serviços de primeira necessidade. De qualquer forma já sabíamos, claro, mas era como se todos estivéssemos à espera de uma licença que acabou por chegar.
Multiplicaram-se números, decretos, palavras eruditas e inoportunas, pensamentos e lágrimas. As pessoas, que até o dia anterior tinham parecido indiferentes, vestiram-se com um ar suspeito, mascaras e luvas esgotadas dos estantes. Distância e cuidado. Afastamo-nos, começámos a falar de “comunidade” e reparei que nunca conheci os meus vizinhos e que realmente não sei a que se refere essa “comunidade”.
Há pouco, cada Quinta feira, às 8:00 da tarde batemos religiosamente as palmas para homenagear os funcionários da saúde, os profissionais, médicos e enfermeiros que ficam na linha da frente. Um trabalho maravilhoso que apenas agora começámos a valorizar de verdade. Mas aqui não há balcões nem varandas, e portanto é só o ruído das palmas que se propaga no vasto silêncio da cidade e as sombras que se escondem atrás das janelas.
É um vírus do silêncio, de despedidas mudas, de palavras, daquelas dores sufocadas, de questões sem respostas, de consciência e inconsciência. É um vírus que paralisou o nosso mundo, muitas das actividades relacionada com os seres humanos, mas que de facto não parou a natureza toda.
Percebemos melhor a fragilidade da nossa existência, a absoluta falta de auto-suficiência, a dependência por muitas coisa, por exemplo pelas decisões dos governos, pelas autoridades da saúde, pelo emprego e pelo dinheiro. Apreendemos a redefinir prioridades, a fazer escolhas mais ou menos arriscada. Depois caberá a alguém investigar a fundo esses factos que nos atropelaram sem avisar. Paramos de sair e viajar, mas há quem nunca teve esses privilégios.
Alguém disse que essa pandemia tornou-nos todos iguais contra o inimigo invisível, mas de facto surgiram diferenças até desconhecidas, escondidas e mais marcadas. Cada um continuou a viver a própria experiência do medo, continuou a calçar os seus sapatos de diferente tipo e tamanho.
“Quando tudo isto passar, nada será como antes”, mas quem sabe alguém já tivesse dito a mesma coisa numa historia passada.
Compartilho o link para assistir a um espectáculo bonito que dá para passar uns bons momentos durante o isolamento. Inspirado no livro do escritor angolano Ondjaki, Ombela- A Origem das Chuva, trata-se de um conto infantil que também faz bem para os adultos.
2 responses to “Palavras soltas em tempos de confinamento”
“Quando tudo isto passar, nada será como antes”, mas quem sabe alguém já tivesse dito a mesma coisa numa historia passada. – já pensei o mesmo.
Na rua da cidade que estou há alguns panos brancos nas janelas para homenagear o pessoal da saúde.
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O Primeiro-Ministro italiano afirmou que estamos escrevendo uma pagina de historia. Bom, os seres humanos nunca aprenderam muito dos factos passado. Você vive na Bélgica? Espero que estejam lidando com a situação.
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